Sunday, June 10, 2007

ESCRAVATURA

Doc. 1

"(Os escravos) são conduzidos completamente nus, tal como nasceram, como se fossem um rebanho de gado. E são trocados por contas de vidro de diversas cores, quinquilharias de cobre e de latão, panos de algodão e outras coisas semelhantes. (Os comerciantes portugueses) conduzem depois os escravos à Ilha de Santiago, onde chegam continuamente navios de diversos países que ali compram os escravos, dando em troca as suas mercadorias."
Luís Cadamosto, Navegação de Lisboa à Ilha de S. Tomé

Doc. 2
"Os homens eram empilhados no fundo do porão, acorrentados, com receio de que se revoltassem e matassem todos os brancos que iam a bordo. As mulheres reservavam a segunda entrecoberta. As que estavam grávidas eram reunidas na cabina de trás. As crianças eram amontoadas na primeira entrecoberta, como arenques no barril. Havia sentinas, mas como muitos tinham medo de perder o seu lugar, faziam aí mesmo as suas necessidades, principalmente os homens, de maneira que o cheiro e o calor se tornavam intoleráveis."
Descrição do Padre Carli, que acompanhou a viagem de 680 escravos, entre homens, mulheres e crianças, para o Brasil, em Frédéric Mauro, Le Portugal et l'Atlantique au XVIIe Siècle (1570-1670)

Doc. 3
“Faz dó ver como se trazem empilhados na coberta dos navios, aos 25, aos 30, aos 40, nus, mal alimentados, amarrados uns aos outros, costas com costas. Uma vez passados para terra, metem-nos numa espécie de enxovia, e quem os comprar, os lá vai ver. Examina-lhes a boca, obriga-os a fazerem exercícios com os braços, curvar-se, correr, saltar e quantos movimentos e gestos pode fazer um homem são de corpo (…) Não resisto a contar a V.S. um episódio que me deixou atónito patenteando ao mesmo tempo a miséria daqueles brutos e a desumanidade de seus senhores. Vi numa praça desta cidade, empilhados no meio do chão, uns 50, talvez, destes animais, formando num círculo em que os pés eram a circunferência, e as cabeças o centro. Forcejavam todos por alcançar de rojo, amarrados pelos pés, uma grande barrica que tivera água.
Detive-me a observar o que faziam. Todo o empenho daqueles miseráveis era poderem lamber as aduelas da barrica, por onde a água se escoava…Entre eles e uma vara de porcos que se afocinhassem na conquista de um lameiro, já pela acção, já pela cor, não havia diferença nenhuma…”

Carta de Filipe Sasseti, de 10 de Outubro de 1578, cit. por Gomes de Brito, in João Brandão, pp. 95/6


Doc. 4

"Chegaram as caravelas a Lagos, de onde haviam partido […]. No outro dia começaram os marinheiros a tirar os escravos que tinham trazido para os levarem segundo lhes fora mandado […].
Qual seria o coração, por duro que pudesse ser, que não ficasse cheio de piedoso sofrimento, vendo a situação daquela gente? […]
Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas, outros estavam gemendo dolorosamente […] outros faziam as suas lamentações em maneira de canto […]. Mas, para a sua dor ser mais acrescentada, chegaram os que estavam encarregados da partida e começaram a apartá-los uns dos outros a fim de fazerem lotes iguais. Para isso havia necessidade de se apartarem os filhos dos pais, as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros […].
Quem poderia acabar com aquela partilha sem grande trabalho? Logo que os tinham posto numa parte, os filhos, que viam os pais na outra, levantavam-se e corriam para eles; as mães apertavam os filhos nos braços para não lhes serem tirados."
Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Guiné (1473)

Doc. 5

“Outro factor chocante para o estrangeiro que anda pela cidade de Lisboa, é a quantidade de negros. Muitos desses pobres infelizes vêm de África, outros nasceram em Portugal ou nas colónias ultramarinas. Não há navio chegado dessas partes do mundo que não traga alguns desses negros. E ao virem a Portugal é-lhes permitido casar não apenas entre eles, mas também com gente de outra cor. Esses cruzamentos tornaram o país repleto dos mais diferentes exemplares de monstrengos humanos. Um branco e um negro geram um mulato. O mulato une-se então a um negro ou a um branco, e com isso formam mais duas variantes de mestiços. Estes mestiços ou brancos, então unem-se a mestiços de negros ou brancos, ou mulatos; e, assim são tantos os ramos em que se desdobram tais cruzamentos, que se torna difícil distingui-los com designações e castas, embora sejam facilmente identificáveis no geral pelos seus tons de pele. A raça portuguesa de origem foi para tal forma degradada que ser um Blanco, isto é, um branco de verdade, tornou-se título honorífico: e, assim, quando um português diz que é Blanco, não quer dizer que a sua pele o seja, mas apenas que se trata de um nobre ou de pessoa de família de certa importância.”

José Ramos Tinhorão, Os Negros em Portugal: Uma Presença Silenciosa, pp.195/6, Editorial Caminho, Lisboa, 1988